18/01/2010

O dia em que os olhos gritaram

Ela não assistia televisão. Quando comentavam sobre a novela ela respondia timidamente: "É que eu não vejo tv..."

Ficava sem graça pq sabia que dentro da cabeça dos outros sempre passava o pensamento: "huuum... pseudo-intelectualzinha. Deve ver Big Brother escondida no youtube." E de fato já havia acompanhado muitas edições, na tv mesmo. Ela até havia trabalhado na tv por um tempo considerável. E como era considerado um crime dizer na frente de seus chefes que não era tão fã assim de tv, sempre confirmava com a cabeça quando o assunto era a programação.

Trabalhava pq tanto o trabalho quanto os colegas eram ótimos. Mas sempre soube que sua alma não estava ali.

Ela preferia a música. Gostava de fechar os olhos e criar sua própria cena.

Achava que a vida deveria ter trilha sonora. Por isso o tal do mp3 grudado nos ouvidos o dia inteiro.

As pessoas ficavam chocadas. Não entendiam como ela poderia preferir o som à imagem.

A verdade é que ela sabia disfarçar muito bem, mas poucos sabiam que ela era autista.

A música era a única forma de acalma-la. Quando era criança se fechava no seu mundo, sentia dor e alegria com 10 vezes mais intensidade. A vida lhe rasgava o estômago, formigava a pele, desritimava o coração.

Então resolveu se trancar no quarto e ouvir música. No máximo. Pra não ter que ouvir mais nada.

Seus pais tinham vergonha dessa condição. O que os outros iriam achar? A menina ouve música! No máximo! E CANTA junto!!!!

Depois de tanta decepção, deixaram de ouvi-la. Criaram um tipo de barreira sonora que não permitia nem mesmo que reconhecessem o timbre de sua voz. Sabiam que era ela apenas quando a menina abria a porta do quarto.

Ela gritava. Sussurrava. Tentava os graves, mas nem mesmo os agudos podiam ser ouvidos através da porta.

Foi aí que resolveu fingir ser normal.

Destrancou a porta do quarto e durante anos se comunicou por sinais.

Terminou o colégio, se formou na faculdade, trabalhou na tv.

Tudo isso sem dizer uma palavra.

Num dia de calor estava bebendo uma garrafinha daquelas de água de maçã e em meio a um soluço disse:

"Esoauuuu!!!"

Um velhinho passava ao seu lado na rua. Usava um aparelhinho daqueles de audição cor da pele. E mesmo não parecendo estar na sua melhor condição disse:

"Heein?"

Ela disse:

"Esooooaaaa..aaaaaaahhhhhhhhhh!!!"

O velhinho ficou olhando com um olhar parado durante algum tempo. Ela tentou os sinais. Fez umas caretas. Nada. Estranho. Ela pensou: "Ih, o vovô morreu!"

Então, ele franziu a testa como se tentasse entender.

A menina deu outro gole, dessa vez entornou a garrafa inteira pra ver se a frase vinha:

"Eeeee eu... eeeeee... eeeeeeuuu...


EEEEEUUUUUU SOU AUTISTA, PORRA!!!"

O velhinho falou:

"Pode falar mais baixo, minha filha, eu não sou surdo. Estou ouvindo. As pessoas achavam que eu não escutava por estar velho, então botei esse aparelhinho aqui pra elas ficarem tranquilas, mas eu escuto perfeitamente. Mas me diga. Qual é o problema?"

Ela disse baixinho: "É que eu sou autista e gosto de ouvir música e cantar junto."

Então o vovô disse:

"Mas que beleza minha jovem. E eu adoro ouvi-las. Ninguém sabe, mas quando a vizinhança vai dormir, eu canto escondido no banheiro."

Ela tomou um susto. Nervosa. Ficou imóvel. A respiração parou.

O velhinho continuou falando e quando olhou pro lado a menina não estava mais lá. Olhou para baixo e ao lado do seu pé estavam os óculos de grau da menina.

Ele sabia que aquele assunto não poderia morrer ali, era papo pra vida, ainda tinha muita coisa pra dizer e escutar.

Então, com a ponta do pé mesmo puxou os óculos do chão e foi de oftamologista em oftamologista descobrir onde morava a moça com 4,25 graus de miopia e 0,75 de astigmatismo.

Hoje, ela fala. Não deixou de ser autista, não. Muito menos de ouvir música. É o que mais faz, inclusive. Depois que perdeu os óculos, sua visão ficou turva. Vê um amontoado de cores.

Essa manhã estava em seu quarto, ouvindo música, quando escutou um velho cantarolar pela janela. Não conseguia enxergar quem era.

A voz foi ficando mais alta, mais alta...


Quando parou frente a frente com um borrão azul e branco.

Era o velhinho.

Ele, que havia pedido para todas as garotas do prédio experimentarem os óculos, para descobrir a verdadeira dona, quando a viu, nervoso, deixou escorregar os óculos pelas mãos. As lentes se quebraram.

Ela, com o pé, deu um chutinho discreto nos óculos, se aproximou e disse:

"Eu enxergo de perto".

Um comentário:

Getkin disse...

Simplesmente LINDO... perfita a crueza com que mostrastes quão pouco conhecemos uns aos outros e a nós mesmos.. Deveria publicar um livro ;)